Recurso Especial
650.728 -
Superior Tribunal de Justiça
- 23/10/2007
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. NATUREZA JURÍDICA
DOS MANGUEZAIS E MARISMAS. TERRENOS DE
MARINHA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE.
ATERRO ILEGAL DE LIXO. DANO AMBIENTAL.
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. OBRIGAÇÃO
PROPTER REM. NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO. PAPEL DO JUIZ NA
IMPLEMENTAÇÃO DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL.
ATIVISMO JUDICIAL. MUDANÇAS CLIMÁTICAS.
DESAFETAÇÃO OU DESCLASSIFICAÇÃO JURÍDICA TÁCITA.
SÚMULA 282/STF. VIOLAÇÃO DO ART. 397 DO CPC NÃO
CONFIGURADA. ART. 14, § 1°, DA LEI 6.938/1981.
1. Como regra, não viola o art. 397 do CPC a decisão que indefere a
juntada de documentos que não se referem a fatos novos ou não
foram apresentados no momento processual oportuno, ou seja, logo
após a intimação da parte para se manifestar sobre o laudo pericial
por ela impugnado.
2. Por séculos prevaleceu entre nós a concepção cultural distorcida
que enxergava nos manguezais lato sensu (= manguezais stricto
sensu e marismas) o modelo consumado do feio, do fétido e do
insalubre, uma modalidade de patinho-feio dos ecossistemas ou
antítese do Jardim do Éden.
3. Ecossistema-transição entre o ambiente marinho, fluvial e
terrestre, os manguezais foram menosprezados, popular e
juridicamente, e por isso mesmo considerados terra improdutiva e de
ninguém, associados à procriação de mosquitos transmissores de
doenças graves, como a malária e a febre amarela. Um ambiente
desprezível, tanto que ocupado pela população mais humilde, na
forma de palafitas, e sinônimo de pobreza, sujeira e párias sociais
(como zonas de prostituição e outras atividades ilícitas).
4. Dar cabo dos manguezais, sobretudo os urbanos em época de
epidemias, era favor prestado pelos particulares e dever do Estado,
percepção incorporada tanto no sentimento do povo como em leis
sanitárias promulgadas nos vários níveis de governo.
5. Benfeitor-modernizador, o adversário do manguezal era
incentivado pela Administração e contava com a leniência do
Judiciário, pois ninguém haveria de obstaculizar a ação de quem era
socialmente abraçado como exemplo do empreendedor a serviço da urbanização civilizadora e do saneamento purificador do corpo e do
espírito.
6. Destruir manguezal impunha-se como recuperação e cura de uma
anomalia da Natureza, convertendo a aberração natural – pela
humanização, saneamento e expurgo de suas características
ecológicas – no Jardim do Éden de que nunca fizera parte.
7. No Brasil, ao contrário de outros países, o juiz não cria obrigações
de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem
passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de
juízes ativistas, pois o ativismo é da lei e do texto constitucional.
Felizmente nosso Judiciário não é assombrado por um oceano de
lacunas ou um festival de meias-palavras legislativas. Se lacuna
existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito na lei; é por
ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial
dos inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador.
8. A legislação brasileira atual reflete a transformação científica,
ética, política e jurídica que reposicionou os manguezais, levando-os
da condição de risco à saúde pública ao patamar de ecossistema
criticamente ameaçado . Objetivando resguardar suas funções
ecológicas, econômicas e sociais, o legislador atribuiu-lhes o regime
jurídico de Área de Preservação Permanente . 9. É dever de todos, proprietários ou não, zelar pela preservação dos
manguezais, necessidade cada vez maior, sobretudo em época de
mudanças climáticas e aumento do nível do mar. Destruí-los para
uso econômico direto, sob o permanente incentivo do lucro fácil e de
benefícios de curto prazo, drená-los ou aterrá-los para a especulação
imobiliária ou exploração do solo, ou transformá-los em depósito de
lixo caracterizam ofensa grave ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado e ao bem-estar da coletividade, comportamento que deve
ser pronta e energicamente coibido e apenado pela Administração e
pelo Judiciário.
10. Na forma do art. 225, caput, da Constituição de 1988, o
manguezal é bem de uso comum do povo, marcado pela
imprescritibilidade e inalienabilidade. Logo, o resultado de
aterramento, drenagem e degradação ilegais de manguezal não se
equipara ao instituto do acrescido a terreno de marinha , previsto no
art. 20, inciso VII, do texto constitucional.
11. É incompatível com o Direito brasileiro a chamada desafetação
ou desclassificação jurídica tácita em razão do fato consumado . 12. As obrigações ambientais derivadas do depósito ilegal de lixo ou
resíduos no solo são de natureza propter rem, o que significa dizer
que aderem ao título e se transferem ao futuro proprietário,
prescindindo-se de debate sobre a boa ou má-fé do adquirente, pois
não se está no âmbito da responsabilidade subjetiva, baseada em
culpa.
13. Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano
ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem
financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem. 14. Constatado o nexo causal entre a ação e a omissão das
recorrentes com o dano ambiental em questão, surge, objetivamente,
o dever de promover a recuperação da área afetada e indenizar
eventuais danos remanescentes, na forma do art. 14, § 1°, da Lei
6.938/81.
15. Descabe ao STJ rever o entendimento do Tribunal de origem,
lastreado na prova dos autos, de que a responsabilidade dos
recorrentes ficou configurada, tanto na forma comissiva (aterro),
quanto na omissiva (deixar de impedir depósito de lixo na área).
Óbice da Súmula 7/STJ.
16. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não
provido.