Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos
O Projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos, coordenado pelo Instituto O Direito por um Planeta Verde tem como meta fomentar o desenvolvimento de instrumentos regulatórios relacionados às mudanças climáticas nos países: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, integrantes do Tratado de Cooperação Amazônica. LEIA MAIS
29/06/2010
Código Florestal, muitas razões para defendê-lo
Transferir para os Estados federados a regulamentação das áreas que hoje são protegidos pelo Código Florestal significa abrir espaço para uma nova modalidade de “guerra fiscal”. A competição entre os Estados baseada na permissividade ambiental. “Aquele que tiver um sistema mais frouxo de proteção ambiental atrairá para si os degradadores”. O alerta é do advogado e procurador do Estado em São Paulo, Guilherme José Purvin de Figueiredo, Diretor do Instituto O Direito por um Planeta Verde.
Ele é categórico ao listar os vários motivos pelos quais é contra as mudanças no Código Florestal que estão em discussão no Congresso Nacional. “O que temos visto são propostas de flexibilização de uma legislação que vem sendo desrespeitada há muito tempo pelos mesmos setores que apostam em sua revogação”, argumenta. Com doutorado e mestrado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), é também professor de direito ambiental no curso de graduação em Direito da Universidade São Francisco e nos cursos de pós-graduação das Faculdades de Direito da PUC/SP e PUC/Rio.
Em entrevista exclusiva ao Observatório Eco, Guilherme José Purvin de Figueiredo defende que na área ambiental poderia ser criado um mecanismo semelhante à Lei de Responsabilidade Fiscal para “exigir que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios efetivamente façam cumprir a lei, tanto em terras públicas como nas propriedades privadas”.
Atualmente, é presidente do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública) e membro do “Projeto Margens Plácidas”, movimento que visa recuperar as margens do Riacho do Ipiranga (SP) e preservar seu entorno em razão dos valores históricos e ecológicos.
O especialista ao analisar o modelo atual de pagamento por serviços ambientais indaga até que ponto a economia de nosso país, ou a de qualquer outro, “suportará o financiamento de ‘serviços ambientais’ que sempre foram prestados pela própria natureza, sem nenhuma interferência humana”. Autor de várias obras, dentre outros, dos livros “A Propriedade no Direito Ambiental” em sua 4ª Edição, 2010, pela Revista dos Tribunais e o “Curso de Direito Ambiental” pela Editora Arte & Letra. Veja na íntegra a entrevista que Guilherme José Purvin de Figueiredo concedeu ao Observatório Eco com exclusividade.
Observatório Eco: Segundo dados da FIESP, o setor sucroenergético já tem um PIB que equivale a 2% o PIB do Brasil, quase equivale ao PIB anual do Uruguai. O senhor acredita que um setor como esse irá abrir mão das áreas cultivadas em prol da reserva legal?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: A reserva legal é uma exigência estabelecida pela Lei nº 4.771/65 e não uma inovação. Se, em algum momento, algum proprietário rural, público ou privado, descumpriu a legislação em vigor, seja o Código Civil, o Código Florestal ou a Lei de Reforma Agrária, deverá, como qualquer outro cidadão brasileiro, responder por isso.
O setor sucroenergético cresceu e desenvolveu-se já sob a legislação que estabeleceu a reserva legal. Ou a Constituição Federal vale para todos (e o seu art. 170, incisos III e VI, dispõe que todos os agentes da ordem econômica devem obediência aos princípios da função social da propriedade e da defesa do meio ambiente) ou tudo não passa de uma grande farsa.
Nas cidades, a adaptação de prédios e ônibus para as pessoas com deficiência são exigências que também têm um custo elevado, e nem por isso abrimos mão deles. Se obediência à lei não passar de uma mera concessão, um “abrir mão”, que argumentos terá o setor ruralista, por exemplo, para exigir judicialmente a desocupação de propriedades produtivas invadidas por movimentos sociais de trabalhadores sem terra?
Assim, eu acredito sim que o setor sucroenergético, que representa tão grande fatia do PIB brasileiro, está, como qualquer outro setor da economia, sujeito à obediência da legislação vigente.
Observatório Eco: Muitos afirmam que a legislação do Código Florestal está superada, e que na verdade pouco protege o meio ambiente. De que maneira o senhor avalia afirmações nesse sentido?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: O Código Florestal, a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a Lei de Política Nacional de Meio Ambiente e a Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais formam um conjunto bastante moderno e eficaz de proteção do meio ambiente.
A proteção do meio ambiente, porém, não depende apenas da edição de leis, mas de sua aplicação efetiva. É claro que sempre é possível melhorar os mecanismos legais de defesa de qualquer direito.
Na área ambiental, poderíamos cogitar da criação de um mecanismo assemelhado à Lei de Responsabilidade Fiscal, para exigir que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios efetivamente façam cumprir a lei, tanto em terras públicas como nas propriedades privadas.
Ocorre que as propostas de alteração dessa legislação têm passado muito longe do objetivo de seu aperfeiçoamento para fins de proteção do meio ambiente. O que temos visto são propostas de flexibilização de uma legislação que vem sendo desrespeitada há muito tempo pelos mesmos setores que apostam em sua revogação.
Os projetos em tramitação são desastrosos. Basta lembrar que um deles investe até contra o alicerce principal do Direito Ambiental, que é o princípio da responsabilidade civil objetiva do poluidor, ao propor a revogação da Lei nº 6.938/81. Refiro-me ao PL nº 5.367/09, de autoria do Deputado Valdir Colatto e que, a pretexto de criar um “Código Ambiental Brasileiro”, constitui a mais grave ameaça de retrocesso da legislação ambiental desde quando o mundo se reuniu na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (Estocolmo/1972).
Responsabilidade objetiva significa que o degradador tem a obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa - ou seja, não importa se ele quis ou não degradar. Degradou, recuperou. Isso já existe na legislação brasileira há cerca de trinta anos. E precisa ser mantido, já que ninguém degrada o meio ambiente “de propósito”, porque “odeia” os mares, rios e florestas. Degrada porque ambiciona o lucro.
Portanto, o elemento subjetivo (ou seja, a culpa), não deve ser perquirido. O que importa é o resultado. Ocorrendo o resultado lesivo, nasce imediatamente a obrigação de reparar o dano.
Por outro lado, transferir para os Estados Federados a regulamentação dos espaços hoje protegidos pelo Código Florestal significa abrir espaço para uma nova modalidade de “guerra fiscal”, a saber, a competição entre os Estados baseada na permissividade ambiental. Aquele que tiver um sistema mais frouxo de proteção ambiental atrairá para si os degradadores.
Os precedentes são conhecidos. Há poucos dias, os jornais divulgaram as dificuldades na obtenção de licenças ambientais para a instalação de um estaleiro de empresa de construção naval do grupo EBX, de Eike Batista, em Santa Catarina. A empresa, diante dos custos para adequar-se às exigências legais, resolveu procurar o governo do Rio de Janeiro, que imediatamente afirmou que ali não haveria grandes dificuldades para se obter o licenciamento do projeto.
Imagine a pressão política sofrida pelos órgãos de defesa do meio ambiente diante da ameaça de transferência de investimentos da ordem de dois bilhões de dólares de um Estado para outro!
Observatório Eco: Dê apenas três motivos contra ou favor das reformas em discussão no Congresso sobre o Código Florestal.
Guilherme José Purvin de Figueiredo: Tenhamos em mente que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito humano fundamental de todos nós. Além disso, é um patrimônio para as crianças que ainda vão nascer – as gerações futuras. Então, a primeira razão pela qual eu defendo a manutenção do atual Código Florestal é que identifico a defesa do meio ambiente como uma postura de defesa da continuidade da vida humana, com boa qualidade.
Em segundo lugar, somos representantes das gerações atuais, somos titulares desse mesmo direito. Iremos abrir mão passivamente dessa conquista? Mais tarde virá a flexibilização do Direito do Consumidor e de quaisquer outros direitos do cidadão em face do poder econômico. Iremos então desistir de tudo o que conquistamos com o fim da ditadura militar e a redemocratização do país? Este é um motivo político muito forte que me leva a ser contrário às reformas propostas no Congresso.
Por fim, se estas duas razões não me convencessem, eu simplesmente adotaria as lições do “Patriarca da Independência”, José Bonifácio de Andrada e Silva, que há dois séculos já alertava para a necessidade da proteção dos recursos naturais como condição necessária para a preservação da produtividade rural.
O Código Florestal destina-se ao combate à perda de terras férteis, à erosão, à desertificação, ao aquecimento de microclimas, às voçorocas, às inundações e tragédias nas margens de rios e encostas de morros. Trata-se, enfim, de um argumento de cunho prático, didático, em defesa da produtividade rural sustentável em meu país.
Observatório Eco: Uma das bandeiras daqueles que querem mudanças no Código Florestal é a criação de regras para o serviço ambiental. As propostas sobre serviços ambientais são válidas?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: A expressão “serviços ambientais” tem sido usada para designar os impactos positivos que os ecossistemas preservados geram além da área onde são gerados. Não estamos falando aqui de serviços prestados pelo ser humano em benefício da recuperação do meio ambiente como, por exemplo, a criação de estações de tratamento de esgoto mais eficientes ou o florestamento de áreas desertificadas a partir de novas tecnologias.
Dentro de uma lógica econômica segundo a qual toda a natureza deve ser tratada como mercadoria, tais propostas são válidas. Não é necessário, porém, mudar o Código Florestal para isso. O mercado de créditos de carbono, por exemplo, não guarda nenhuma incompatibilidade com o regime hoje estabelecido pelo Código Florestal.
Por outro lado, restaria saber até que ponto a economia de nosso país (ou a de qualquer país) suportará o financiamento de “serviços ambientais” que sempre foram prestados pela própria natureza, sem nenhuma interferência humana. Falamos de simples manutenção de biodiversidade existente ou, simplesmente, “quanto ganho se não passar a motosserra nesta floresta primária localizada em minha propriedade”. Esta não seria, mais uma vez, a lógica da barbárie? Não estaríamos criando um sistema no qual a humanidade seria refém daqueles que têm o privilégio da propriedade de um patrimônio comum?
Por outro lado, seria lícito equiparar juridicamente a situação enfrentada por um pequeno proprietário de imóvel onde há uma nascente de água ao grande ou mesmo ao médio proprietário rural? Em São Paulo, foi criado um programa de proteção e recuperação de nascentes, o Programa “Adote uma Nascente”: aqueles que tiverem uma nascente em sua propriedade, mas não tiverem recursos para preservá-la, poderão disponibilizar a área para ser adotada por outra pessoa ou entidade. Talvez esse programa venha a ter bons resultados. Enfim, a questão é bastante abrangente e polêmica.
Observatório Eco: Por outro lado, o que seria mais adequado à preservação do meio ambiente, uma legislação unificada, ou o modelo de leis esparsas que se torna um labirinto jurídico?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: A consolidação da legislação ambiental vigente num único texto – uma consolidação simples, que não altere absolutamente nenhuma lei em vigor – é um passo importante para que comecemos a pensar no aperfeiçoamento de nosso ordenamento jurídico ambiental. O que preocupa que iniciativas isoladas de setores poderosos da economia invistam contra nosso ordenamento jurídico de acordo com seus interesses privados.
Assim, entendo proveitosa a consolidação da legislação ambiental vigente – a exemplo do que já aconteceu há mais de meio século com a legislação trabalhista. Mas certamente estaremos diante de um labirinto jurídico se aquilo que hoje é tratado pela Lei nº 4.771/65 vier a ser pulverizado em 26 diferentes leis estaduais e milhares de leis municipais.
Observatório Eco: Os movimentos ambientalistas estão falhando na defesa do atual Código Florestal?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: O atual Código Florestal só existe ainda em razão da resistência cívica da população em defesa do meio ambiente. Se mais não se fez é porque a defesa do meio ambiente não é uma bandeira financiada por algum setor poderoso da economia. Quem está defendendo o Código Florestal? Advogados públicos, promotores de justiça, jornalistas, estudantes universitários, biólogos, trabalhadores organizados, enfim, há muita gente alinhada nessa frente de resistência às investidas dos setores ruralistas mais retrógrados.
Maria Rita Kehl não é identificada como liderança ambientalista, é uma brilhante psicóloga que tem se posicionado firmemente em defesa do Código Florestal. Dalmo Dallari, jurista de renome internacional cuja história de vida é ligada à luta pelo Estado de Direito, também tem se postado publicamente contra a proposta daquele que batizou como representante do “PCA - Partido Comunista do Agronegócio”. Até o MST, que jamais foi uma ONG ambientalista, tem atuado com firmeza em defesa do Código Florestal.
Por outro lado, alguns integrantes das ONGs chamadas ambientalistas acabaram se esquecendo de sua origem ao serem convidados a ocupar cargos em comissão no governo.
Por isso, acho que não faz sentido falar em “movimentos ambientalistas” como grupos coesos e identificados a uma única causa, como por exemplo, aumentar os lucros com a produção de etanol, soja e carne bovina. Falamos de cidadãos das mais diversas profissões, faixas etárias e classes sociais, preocupados com a defesa do que resta de nossa riquíssima e inexplorada biodiversidade, pessoas que não querem que ela se transforme em pasto para o fornecimento de hamburgers para norte-americanos ou em soja para ração de porcos.
Observatório Eco: Parece também existir uma pressão forte no Congresso para tornar áreas de exploração sustentável, áreas que foram consideradas de máxima proteção. Qual a sua avaliação sobre isso?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: Se tais áreas foram, em algum momento, consideradas de proteção máxima, certamente não desapareceram as razões para isso. Vamos, então, corrigir o tempo do verbo: “são consideradas” e não “foram consideradas”. Uma delas, evitar calamidades – e Santa Catarina, Rio de Janeiro e, mais recentemente, Alagoas e Pernambuco são alguns estados que sofrem gravíssimos problemas com a ocupação dessas áreas. Mais ainda, o ciclo ocupação/calamidades fatalmente culminará em responsabilização do Poder Público - vale dizer, em sangria dos cofres públicos, formados pelo dinheiro do povo contribuinte.
Observatório Eco: Em períodos de mudanças climáticas, diminuição de florestas, extinção de espécies parece prevalecer a atitude de “uso nocivo da propriedade”, nem as árvores nas calçadas escapam da fúria de donas de casas !! (que reclamam das folhas que sujam a calçada, dos passarinhos, das flores que caem no chão!!) Por que essa revolta com a Natureza, quando deveríamos protegê-la?
Guilherme José Purvin de Figueiredo: Felizmente essa mentalidade está em extinção e hoje não passa de uma caricatura: a bruxa malvada que odeia o que é belo. Se você abrir os jornais de domingo, verá que, ao contrário do que sugere a pergunta, árvores, flores e pássaros são sempre apresentados como atrativos para a aquisição de novos lançamentos imobiliários. Na determinação do preço de um bem no mercado imobiliário, as condições ambientais constituem importante característica ressaltada na publicidade do imóvel. A proximidade de um parque urbano, a arborização das ruas do bairro, tudo isso agrega valor à propriedade imobiliária.
Em contrapartida, as regiões que ostentam as piores condições ambientais, mais próximas a indústrias poluidoras ou a áreas contaminadas, por seu baixo valor imobiliário, são normalmente ocupadas pelas populações de menor poder aquisitivo. Pergunte a um morador da Avenida São João, onde passa o famigerado “minhocão”, ou do deserto de concreto que é a Praça Roosevelt, se ele não trocaria seu apartamento sem passarinhos, árvores e flores por uma casa no Jardim Europa, bairro inteiramente arborizado, onde o sombreamento contribui até mesmo para uma redução da temperatura nos dias mais quentes de verão em São Paulo. Ou em qualquer condomínio de luxo, onde certamente não encontraremos as donas de casa que você descreve.
Em minha avaliação, hoje em dia a população brasileira e mundial estão muito mais conscientes da importância da proteção da natureza. Qualidade de vida nas cidades pressupõe uso ordenado do solo, parques, ruas arborizadas. Ninguém, em sã consciência, prefere barulho, congestionamento de trânsito e caixotes de concreto.
Fonte: Observatório Eco/ Roseli Ribeiro