O Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo foi sancionado nesta quinta-feira (31/8), após um longo processo de discussão na Câmara Municipal dos Vereadores. Ao todo, 114 audiências públicas foram realizadas, envolvendo cerca de 25 mil participantes e mais de 10 mil contribuições. A pressão exercida pelos movimentos sociais urbanos, especialmente aqueles ligados à moradia, somado ao debate na imprensa, fizeram do processo de tramitação do PDE um dos principais debates políticos da cidade de São Paulo desde junho de 2013.
Em vigor a partir desta sexta-feira, o documento fornece as diretrizes pelas quais a cidade deverá crescer e se transformar nos próximos dez anos. Previsto pelo Estatuto das Cidade, o PDE é definido como “o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”. O último plano, aprovado em 2002, durante a gestão de Marta Suplicy, deveria ter sido revisto em 2006, o que não aconteceu.
A versão final do Plano foi avaliada por diversos urbanistas como positiva para uma cidade mais justa e participativa. O prefeito Fernando Haddad publicou um texto na Folha de S. Paulo, no qual defende que o PDE amplia a dimensão pública da cidade e que o “mercado imobiliário, que sempre elegeu o bairro da vez, com as consequências conhecidas, é chamado a participar de um processo em que a vez é da cidade”. De acordo com ele, “a visão de empreendimento privado como enclave dará lugar à produção de vida urbana com equilíbrio econômico e socioambiental.”
O Plano Diretor pode contribuir para uma cidade mais justa?
“Tudo neste Plano Diretor é bom em tese. Em tese, ele aproxima o emprego da habitação; em tese, ele coloca mais gente morando próximo dos eixos de transporte público; em tese, ele cria áreas para habitação de interesse social; em tese, ele vai proteger as áreas de preservação ambiental, os mananciais, etc. Mas quando você vai ver a regulação que está proposta, ele poderá implicar em tudo ao contrário do que diz o discurso oficial”, preocupa-se o urbanista José Marinho Nery Jr.
A preocupação se justifica com o aumento do Coeficiente de Aproveitamento (CA) para 4,0 – área que poderá ser construída somando todos os pavimentos – nas regiões próximas aos metrôs e avenidas radiais da cidade. Para Marinho, a medida atende aos desejos das construtoras por novos potenciais construtivos, sobretudo após o esgotamento vivenciado pelos bairros de Perdizes, Lapa, Liberdade, Cambuci e Mooca.
Além disso, acrescenta ele, essa decisão foi tomada sem considerar o planejamento dos bairros, sem estudo de impacto ambiental e de vizinhança, “sem regras de construção, ou seja, sem urbanismo propriamente dito, atingindo 65 estações de metrô e todo o entorno dos corredores de ônibus automaticamente”.
Já o arquiteto e professor da FAU-USP, Guilherme Wisnik, acredita que o PDE aparece como o primeiro plano de São Paulo com “consciência urbana”. “O Plano procura corrigir o predomínio do poder da especulação na cidade, que é total. Ele dá instrumentos para o poder público com vistas ao interesse público. Isso significa garantir direitos sociais a classes menos favorecidas quando a cidade está só exposta às regras do lucro”, analisa.
Como exemplos dessa visão, o arquiteto aponta a criação de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), destinadas à construção de moradias populares, não apenas nas periferias, mas também no centro. O destaque que o Plano confere para a o transporte público também chama a atenção de Wisnik.
“A prefeitura soube ouvir junho de 2013, as manifestações, essa pauta da mobilidade e do direito à cidade. Os corredores de ônibus como eixos estruturantes são um desses exemplos. É importante que se adense essas áreas, que tenha gente e que, com isso, tenhamos os miolos dos bairros preservados com vida local”, afirma Wisnik.
Mas como garantir que o plano seja efetivado?
“Como já mostrou o urbanista Flávio Villaça, no livro ‘A ilusão do Plano Diretor’, planos diretores no Brasil tendem a servir apenas como uma cortina de fumaça tecnicista para escamotear as práticas arcaicas de (não) planejamento que servem, com ou sem plano diretor, aos interesses dos grupos dominantes”, defende Marinho.
Para Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e membro do Conselho Municipal de Política Urbana, o grande desafio agora é garantir a implementação das diretrizes. “Nós temos uma história de marcos legais que na prática pouco avançam. As ZEIS, por exemplo, sem uma política habitacional e de uso e ocupação do solo, podem passar batidas. Corre-se o risco de se ter um plano bonito mas com pouca efetividade.”
A opinião é compartilhada por Josué Costa, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), organização popular que protagonizou uma série de ocupações e manifestações em frente à Camara. “Temos 33 km² de ZEIS agora, mas precisamos de uma fiscalização diária dessas áreas. No Morumbi, antigas zonas para habitação popular e urbanização da favela de Paraisópolis se tornaram condomínios de luxo.” Apesar dos riscos, ele acredita que o PDE apresenta um conjunto de medidas “que podem de algum modo conter o avanço da especulação imobiliária na cidade”.
A “Batalha do PDE” – como definiu uma das lideranças do MTST – está longe de acabar. Sancionado, o Plano aguarda a próxima etapa, que decidirá sobre o uso e ocupação do solo, e definirá a aplicação do PDE nos territórios, criando Planos Regionais para toda a cidade.
“Eu penso que o mercado vai atuar bastante agora. Deve ser um processo amplo e aberto de discussão, mas está se falando muito menos. Nós que acompanhamos sabemos que os movimentos sociais têm que estar bastante atentos, principalmente os de moradia, os ambientais, os ligados à mobilidade”, alerta Kohara.
“Olhar a longo prazo é um problema no Brasil”, pondera o economista Cícero Yagi, da Rede Nossa São Paulo, grupo que reúne mais de 700 organizações sociais da capital paulista. “Boa parte dos problemas da cidade não têm solução em quatro anos. O imediatismo é um problema característico da política urbana das cidades brasileiras. Não há uma cultura do planejamento”.
Ele lembra que, enquanto o PDE de 2002 focava na questão da moradia, o novo dispositivo tem como mérito tentar aproximá-la da discussão de mobilidade. “Temos estudos e diagnósticos que mostram caminhos, mas sem a população cobrar do Legislativo e do Executivo, é muito difícil que essas coisas saiam do papel.”