A bancada ruralista prepara mais uma ofensiva para enfraquecer a legislação ambiental brasileira. Nesta semana, voltam à pauta do Congresso Nacional duas propostas que restringem drasticamente os direitos territoriais das populações tradicionais e indígenas e torna inviável a criação de parques nacionais e outras Unidades de Conservação (UCs).
Ligado à bancada do agronegócio, o deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) apresentou um substitutivo à polêmica Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que pode ser apreciado nesta terça-feira (9) na Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa a matéria. Já a Comissão Mista de regulamentação do Artigo 231 da Constituição Federal se reúne na quarta (10) para votar o parecer do senador Romero Jucá (PMDB-RR), no Senado Federal.
A PEC 215 transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de aprovar Terras Indígenas, unidades de conservação e territórios quilombolas. Para tanto, o relatório de Serraglio também prevê que “a criação, a alteração e a supressão de espaços territoriais a serem especialmente protegidos far-se-ão por lei”.
O texto propõe ainda uma ampla gama de exceções ao direito de posse e usufruto das terras por parte dos povos indígenas, além de inviabilizar novas demarcações e legalizar a invasão, a posse e a exploração de terras indígenas demarcadas.
A outra proposta que pode entrar em votação é o Projeto de Lei Complementar que regulamenta o Art. 231 da Constituição Federal, assinado por Romero Jucá, ex-líder do governo no Senado – que também é relator do parecer controverso da PEC do Trabalho Escravo. O texto estabelece que propriedades rurais poderão ser excluídas da delimitação das terras indígenas se seus títulos de ocupação forem “considerados válidos” ou poderão ser objeto de desapropriação ou de compensação com outra área ofertada pela União. Dessa forma, o projeto transforma interesses privados em "de relevante interesse público da União".
Se aprovadas em definitivo pelo Congresso e forem sancionadas pela Presidência da República, as novas leis abrirão caminho para um grande “golpe político” contra direitos constitucionais, congelando na prática a demarcação de novos territórios indígenas e quilombolas e a criação de parques nacionais e outras áreas de importância ecológica, que são instrumentos fundamentais para o combate ao desmatamento e às mudanças do clima e para a manutenção de serviços ambientais essenciais para a própria economia, como o fornecimento de água.
Segundo o diretor de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica, Mario Mantovani, as propostas são um risco para as Unidades de Conservação, pois podem colocar tudo a perder no que já foi regulamentado até hoje nas propriedades privadas com o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). “A PEC 215 segue a mesma linha do novo Código Florestal. Ela vem para resolver o problema de alguns grupos em um país que não cumpriu sequer com a sua representatividade em UCs e as metas de Biodiversidade”, afirma Mantovani, que também alerta sobre a falta de recursos do governo brasileiro para a implementação dessas unidades.
Para o superintendente de Políticas Públicas do WWF-Brasil, Jean-François Timmers, apesar dos graves problemas na implementação das áreas protegidas e da falta de pessoas e recursos para a gestão das unidades de conservação, o rito de criação dessas áreas segue – e deve continuar seguindo – critérios técnicos rigorosos de relevância ambiental e social.
“No caso das Reservas Extrativistas e Terras Indígenas, os aspectos cultural e econômico são determinantes para garantir a sobrevivência de povos e comunidades tradicionais que operam como agentes de proteção da biodiversidade, das matas e recursos hídricos. No caso dos parques, deve ser considerada sua relevância no contexto da paisagem e suas relações com os serviços ecossistêmicos, como o fornecimento de água e o equilíbrio do clima”, explica Timmers.
“Não se pode deixar que uma decisão que envolve a conservação de nossos recursos naturais para essas e as futuras gerações esteja à mercê de interesses setoriais alojados temporariamente no Congresso Nacional. Mesmo quando for necessário mudar o status de alguma dessas áreas ou reduzi-las para corrigir eventuais erros no processo de criação, o critério técnico deveria ser tão rigoroso e as discussões e consultas tão completas quanto no processo de criação. E hoje isso não ocorre, o que é um contrassenso”, destaca o superintendente do WWF-Brasil.
Liderança ameaçada
Nos últimos anos, o Brasil tem sido reconhecido como líder mundial devido à redução de 80% na taxa de desmatamento na Amazônia brasileira – mesmo que dados recentes indiquem uma retomada preocupante do corte de florestas na região. O país também tem a maior rede de áreas protegidas do mundo.
O Brasil é signatário e ratificou uma série de acordos internacionais ligados à conservação da natureza como a Convenção de Ramsar e a Convenção de Biodiversidade Biológica (CDB). Essa trouxe as Metas de Aichi, que preveem a proteção de 17% de áreas terrestres e de águas continentais e 10% de áreas marinhas e costeiras, até 2020.
“Para a Amazônia essas metas já foram quase alcançadas, exceto quanto à representatividade dos ecossistemas protegidos. Mas para a totalidade dos outros biomas terrestres e para nossa zona costeira e marinha há um grande desafio de criação de áreas protegidas, tanto de proteção integral quanto de uso sustentável”, afirma Aldem Bourscheit, especialista em Políticas Públicas do WWF-Brasil.
Segundo ele, essas propostas podem impedir o Brasil de cumprir compromissos internacionais ligados à conservação da natureza. “Elas projetam a recolonização do Brasil, que já começou com a aprovação do novo Código Florestal, ampliando a porcentagem de uso produtivo da terra em propriedades privadas e reduzindo a função ecológica e social dessas áreas”, diz Bourscheit.
Outro estudo recente, realizado por pesquisadores brasileiros e britânicos, adverte que as mudanças propostas na legislação socioambiental, incluindo o Novo Código da Mineração, podem representar uma séria ameaça para as áreas protegidas, enfraquecendo o status internacional do Brasil como um líder ambiental.
Os pesquisadores destacam o fato de que essas propostas refletem uma mudança preocupante no apoio demonstrado pelo governo federal do Brasil para com a proteção ambiental.
Observa-se o desmantelamento parcial do sistema de áreas protegidas do Brasil para abrir caminho para o desenvolvimento - com cerca de 44.100 km2 perdidos desde 2008 devido à redução de área ou extinção da proteção – e o enfraquecimento do Código Florestal, que deu uma anistia aos proprietários que desmataram ilegalmente no passado.
UCs podem ser economicamente rentáveis
Estudos no âmbito do projeto PolicyMix, que reúne instituições de pesquisa brasileiras e internacionais na formulação de ações que unam geração de renda com conservação, concluíram que cidades no noroeste do Mato Grosso, no chamado “Arco do Desmatamento”, podem arrecadar mais recursos mantendo a floresta em pé do que com criação de gado e extração de madeira.
Em Cotriguaçu, com 33% de seu território em áreas protegidas, o ICMS Ecológico rendeu ao município R$ 1,3 milhão, enquanto a pecuária e a extração de madeira foram responsáveis por arrecadar pouco mais de R$ 861 mil. Já em Juína, que possui 61,7% de suas terras em Unidades de Conservação e Terras Indígenas, a arrecadação do ICMS Ecológico chegou a R$ 2,78 milhões, enquanto a pecuária e a madeira geraram apenas R$ 2,04 milhões. Isso mostra que é possível desenvolver o país sem lançar mão de medidas que conservem o patrimônio natural do país.
Além disso, os estudiosos garantem o Brasil não precisa abrir novas áreas para a produção agrícola, bastando usar de modo mais racional aquilo de que dispõe. Até mesmo o Ministério da Agricultura adverte que não é preciso derrubar nenhuma árvore para produzir mais grãos ou aumentar áreas de pastagem para pecuária de corte. O ministério contabiliza 120 milhões de hectares já antropizados – desmatados – que podem usados para a agricultura.
“As áreas protegidas são reservas estratégicas para o futuro, tanto do ponto de vista dos recursos genéticos, hídricos, mas também de áreas de grande potencial turístico e de lazer, áreas de valorização cultural e social também de amplas regiões do país”, lembra o superintendente do WWF-Brasil.
Nos resultados de uma recente pesquisa do Ibope encomendada pela organização, as áreas protegidas apareceram como um dos principais motivos de orgulho para os brasileiros. A pesquisa revelou que a maior parte da população tem um forte sentimento pelo meio ambiente e as riquezas naturais do país. A maioria dos entrevistados sabe da importância das áreas protegidas para o bem estar humano e avalia que a natureza não está sendo tão bem cuidada como deveria.
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Fonte: Clarissa Presotti/ Portal de Políticas Socioambientais