Ana Maria de Oliveira Nusdeo
A instabilidade política que se instalou desde o rompimento da Barragem da Samarco, em novembro de 2015, abriu espaço para ações oportunistas de grupos de interesse no âmbito dos Poderes e foi fértil para projetos de lei que reduzem o alcance da proteção ambiental. O vazamento de 50 milhões de m3 de rejeito de ferro nos rios capixabas – e que depois chegaram ao mar, a perda de vidas e o impacto sobre atividades econômicas na região deveriam ter servido para o aperfeiçoamento da legislação e de sua aplicação para evitar novas tragédias. Não foi o que ocorreu. Muito pelo contrário.
O licenciamento ambiental é um caso paradigmático. Trata-se de importante instrumento de prevenção de danos ambientais porque analisa empreendimentos desde a etapa de sua concepção. Há mais de uma década tramitam projetos para uma lei geral sobre o licenciamento, a qual os Estados e Municípios poderiam suplementar no âmbito de sua competência. Nesse período, muito se debateu a fim de que a futura lei pudesse equacionar o conflito entre o desejo dos empreendedores de maior celeridade e previsibilidade no procedimento, com maior segurança jurídica e o consenso acerca da importância da proteção ambiental. Atualmente esse equacionamento é totalmente falho.
Basta verificar que as principais obras de infraestrutura dos últimos anos foram objeto de cerca de vinte ações judiciais durante seus processos de planejamento e implantação, sem que isso tenha impedido a violação de direitos e impactos ambientais não mitigados. No final de 2016, o Ministério do Meio Ambiente assumiu a tarefa de elaborar projeto de lei que refletisse essa busca de consenso.
No entanto, cresceu a pressão por soluções que pendem fortemente ao interesse imediato dos empreendedores e novos substitutivos a projetos de lei foram postos em adiantado processo no Congresso Nacional. Seus principais pontos polêmicos referem-se a: previsão genérica e sem definição de condições para licenciamento simplificado; licença autodeclaratória e isenções de licenciamento; espaço para regulamentação ainda mais flexível pelos Estados; a previsão de licenciamento corretivo para empreendimentos irregulares em condições brandas; a desnecessidade de autorização dos órgãos responsáveis pela unidade de conservação, terra indígena e território quilombola para empreendimentos que afetam essas áreas protegidas ou sua zona de amortecimento; aumento do prazo de validade das licenças ambientais; renovação automática de licenças e redução do espectro das audiências públicas.
A aprovação de Projetos de lei que defendem, não o aperfeiçoamento do licenciamento ambiental, mas sua flexibilização não representa apenas um retrocesso à proteção ambiental, também passará longe da desejada celeridade e segurança jurídica desejada pelos empreendedores.
Em muito dos aspectos referidos, desconsidera uma consolidada interpretação da Constituição e dos princípios do direito ambiental e resultaria no aumento da judicialização nos procedimentos de licenciamento. Um bom exemplo é a dispensa de licenciamento para atividades potencialmente poluidoras ou causadoras de degradação, já considerada inconstitucional pelo STF (ADI n.º 1086/SC dispensa para atividades agropecuárias). Deve ser lembrado, também, que a sustentabilidade que garante a disponibilidade de água, a estabilidade climática e outros serviços ecossistêmicos é essencial para manter a produtividade de certos setores, sobretudo o do agronegócio.
Daí a importância de se retomar a negociação e tramitação em torno dos seguintes elementos: 1) previsão de regras claras sobre os diferentes procedimentos de licenciamento: trifásico (o modelo atual baseado em três licenças); trifásico com estudo de impacto ambiental e simplificado. De preferência levando em conta critérios de relevância ambiental do local, porte e características do empreendimento; 2) definição e parâmetros quanto ao impacto do empreendimento nos seus aspectos físicos, biótico, econômicos e sociais 3) incorporação do instrumento da avaliação ambiental estratégica, que permite a análise do impacto de políticas e programas governamentais como um todo e colige informações sobre o local do empreendimento, que podem vir a ser dispensadas dos estudos de impacto ambiental específico, segundo critérios; 4) disciplina adequada das audiências públicas e do seu procedimento para adequar o licenciamento à exigência constitucional de publicidade do estudo de impacto ambiental, bem como às contemporâneas aspirações por transparência e participação social; 5) nenhuma eliminação de autorização nem facilitação da realização de obras em unidades de conservação ou sua zona de amortecimento. Essas foram sendo criadas ao longo de décadas para garantir a conservação da biodiversidade brasileira, a proteção aos recursos hídricos e os diversos serviços ecossistêmicos que dão suporte à vida e às próprias atividades econômicas. Mantê-las é compromisso assumido pelo Brasil perante a comunidade internacional e dever moral para com as futuras gerações; 6) o mesmo vale para as terras indígenas, áreas com o menor índice de desmatamento do país; 7) estabelecimento de parâmetro para as compensações ambientais e 8) a previsão do monitoramento do cumprimento das condicionantes estabelecidas nas licenças ambientais.
Por fim, cabe acrescentar que o licenciamento não será célere; juridicamente seguro ou eficaz para garantir a proteção ambiental se não houver investimento na capacidade técnica dos órgãos licenciadores e da geração de adequadas informações ambientais. O seu fortalecimento e adequado orçamento para suas funções são medidas tão importantes quanto possíveis alterações legislativas.
Ana Maria de Oliveira Nusdeo - Professora de Direito Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Fonte: JOTA