Em 6 de outubro de 2016 , o Supremo Tribunal Federal do Brasil julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4983, proposta pelo Procurador-Geral da República contra a Lei no 15.299/2013 do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural.
Por 6 votos a 5, o ministros consideraram que esta prática submete os animais a crueldade, violando assim o inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal.
Acontece que a mesma Constituição, em seus artigos. 215 e 216 da dispõem sobre o meio ambiente cultural, estabelecendo que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional, protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
De fato, proveniente de Portugal, as origens desta tradição cultural remontam ao período colonial, especialmente no Nordeste do Brasil, como forma dos vaqueiros juntarem o gado espraiado pela fazenda e circunvizinhança. Nesta costume a derrubada do boi fugitivo representava o completo domínio sobre animal e a garantia de que ele retornaria à posse de seu proprietário.
Para Câmara Cascudo, porém, ocorreu um desvirtuamento da vaquejada nos dias de hoje, que deixou de ser um meio de sobrevivência rurícola para se tornar um “esporte da aristocracia rural” [...] uma verdadeira “festa pública, nas cidades com publicidade e alto-falante, fotografias e aplausos citadinos”.
É importante destacar que o que esteve em jogo na decisão do STF brasileiro foi a colisão entre dois direitos fundamentais: o direito fundamental da sociedade a um meio ambiente sadio e equilibrado, materializado no direito dos próprios animais de não serem tratados com crueldade em conflito com o direito à manifestação cultural.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio Melo afirma que:
O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1o do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente.
O Ministro Luis Roberto Barroso, por seu turno, destaca que:
Na vaquejada, a torção brusca da cauda do animal em alta velocidade e sua derrubada, necessariamente com as quatro patas para cima como exige a regra, é inerentemente cruel e lesiva para o animal. Mesmo nas situações em que os danos físicos e mentais não sejam visíveis de imediato, a olho nu, há probabilidade de sequelas graves que se manifestam após o evento. De todo modo, a simples potencialidade relevante da lesão já é apta a deflagrar a incidência do princípio da precaução.
No voto decisivo, a Ministra Carmen Lúcia, utilizou uma interpretação evolutiva para considerar que a promulgação da Constituição Federal de 1988 alterou a compreensão sobre a vaquejada, demonstrando assim que a Lei do Estado do Ceará era inconstitucional por permitir a derrubada do boi pelo rabo, uma prática que, segundo estudos médicos veterinários, efetivamente submete os animais à crueldade e maus-tratos.
Em seu voto, a Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha afirma que:
Sempre haverão os que defendem o que vem de longo tempo e se encravou na cultura do nosso povo. Mas cultura se muda e muitas foram levadas nessa condição até que houvesse outro modo de ver a vida, não somente a do ser humano.
Seja como for, o STF brasileiro, seguindo os seus próprios precedentes em julgamentos sobre a Briga de Galo e da Farra do Boi, reafirmou a prevalência dos direitos dos animais em relação às manifestações culturais.
Além disso, tratando-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade, o STF brasileiro adota a Teoria da Transcendência dos Motivos Determinantes, de modo que a ratio decidendi do julgamento terá efeito erga omnes e vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública Federal, estadual e municipal.
Isto significa dizer que qualquer lei nacional, estadual ou municipal com conteúdo semelhante, isto é, que permita a “pega do boi” estará impedida de ser aplicada, sujeitando aqueles que descumprirem a decisão do STF às sanções judicais, como as previstas no artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), que criminaliza a prática de atos de abuso, maus-tratos, ferimento ou mutilação dos animais.
Heron Gordilho
Pós-Doutor pela Pace Law School, New York (EU) onde é Coordenador Regional do Brazil-Amarican Institute for Law and Environment (BAILE) Coordenador do PPGD/UFBA. Consultor da UICN. Presidente da Asociacion Latinoamericana de Derecho Animal (ALDA). Promotor de Justiça Ambiental em Salvador. E-mail: heron@ufba.br
Fonte: Heron Gordilho