Desdobramentos da sua decisão sobre anistia de deveres de
recomposição na preservação dos biomas brasileiros
O Supremo Tribunal Federal iniciou, em 14/09/2017, o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade números 4901; 4902; 4903 e 4937, propostas contra a Lei 12.651/2012 que estabelece a proteção da vegetação nativa, e é chamada impropriamente, de novo Código Florestal. Pedido de vista da presidente Cármen Lúcia interrompeu o julgamento depois do voto do relator Luiz Fux. O desfecho desse julgamento trará o esclarecimento de importantes questões relativas à extensão da proteção florestal.
Um dos aspectos pendentes de definição diz respeito ao dever de recuperação de imóveis desmatados no passado, que não dispõem da porcentagem de mata nativa protegida pela lei – a chamada reserva legal. Essa varia de acordo com o bioma e a região no qual se localiza o imóvel: 80% na área de floresta na Amazônia Legal; 35% na Área de cerrado na Amazônia Legal e 20% nos demais biomas e regiões do país. O estabelecimento em lei dessas porcentagens alterou-se ao longo do tempo.
O problema a esse respeito é que a exigência de preservação prevista na legislação anterior, não vinha sendo cumprida por muitos proprietários e possuidores. Assim, a Lei 12.651/2012 buscou eximir parte das propriedades do dever de se adaptar às suas exigências, estabelecendo uma regra de exceção: aqueles que realizaram supressão de vegetação nativa, respeitando os percentuais de Reserva Legal previstos pela legislação em vigor à época em que ocorreu o desmate são dispensados de promover as medidas de regularização estabelecidas por essa lei, que exige a recuperação da área. Esse é um dos motivos que ensejaram a propositura das Ações de Inconstitucionalidade.
A decisão do STF neste caso tem muito a ver com importantes questões políticas sobre as quais o Supremo se manifestou nos últimos anos. Afinal, seus efeitos repercutirão fortemente na preservação do Meio Ambiente, requerendo resposta clara e consistente que sinalize uma solução ao conflito em questão.
Reconhecer a validade jurídica desse dispositivo legal resultará em diminuição significativa da área protegida a ser recuperada. Esta diminuição aconteceria justamente em Biomas mais ameaçados. A Mata Atlântica (historicamente mais utilizada e que tem cerca de 20 % remanescente), o Cerrado (que hoje é objeto de grande degradação) e o Pampa (do qual resta cerca um terço de sua cobertura). No Cerrado, por exemplo, essa situação se agrava, na medida em que leis estaduais regulamentadoras do novo Código Florestal têm estabelecido entendimentos discutíveis acerca do marco temporal em que o bioma passou a ser protegido pela reserva legal. No espectro mais estritamente jurídico, a decisão do STF pode impactar a interpretação dos institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da aplicação intertemporal das normas do direito ambiental, refletindo na criação de incentivos/desincentivos quanto cumprimento da lei no futuro. Note-se que a abrangência da liberação do dever de reparar, para aqueles que estão em situação irregular, pode induzir à percepção de que o descumprimento da lei sempre será anistiado em medidas normativas futuras.
A questão jurídica central em discussão diz respeito à aplicação da lei ambiental no tempo e sua interação com os institutos do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, que são protegidos pela Constituição. Ela se traduz na seguinte questão: lei mais recente, mais protetiva ao meio ambiente, é aplicável a todos os imóveis ou aqueles que foram desmatados sob a égide de legislação anterior teriam o direito adquirido de não se adequar ao exigido na nova lei? Ou, sob outro enfoque, estaria a situação de supressão realizada sob a égide da lei anterior protegida como ato jurídico perfeito?
A figura do direito adquirido visa a proteger os titulares de direitos constituídos sob uma norma que, posteriormente veio a ser alterada, de modo que não serão afetados em decorrência da mudança da norma. O direito adquirido é consequência de um fato, apto a produzi-lo,de acordo com a lei vigente ao tempo de sua ocorrência. Nesse caso adquire-se o direito em decorrência de um ato ou fato jurídico capaz de constituí-lo. Há necessidade de um fato previsto em lei, em abstrato, que será apto a criar o direito assim que o fato ocorra?.O exemplo mais característico é o da possibilidade de aposentadoria do funcionário que satisfaça as condições para requerê-la sob uma lei posteriormente alterada (fato jurídico) que poderá fazê-lo na vigência de lei nova mesmo que sem satisfazer as condições dessa última. Ou do proprietário que obteve licença para construção (ato jurídico) sob a égide de uma lei e poderá realizá-la após a mudança legal. O ato ou fato jurídico em questão deve ter se realizado por inteiro.
Diversa é a situação que se dá em relação à aplicação do novo Código florestal. Não é possível identificar na supressão de vegetação realizada um ato ou fato jurídico que tenha se realizado por inteiro. Ao contrário, o objeto da lei são as regras de proteção incidentes sobre uma situação que se prolonga no tempo, que é a exploração de atividades produtivas no imóvel. Como já escreveu o saudoso ministro Teori Zavascki?, não há direito adquirido a manter inalterado regime jurídico. Vale dizer, não existe direito a manter as regras aplicáveis a uma situação após sua alteração. Por essa razão, proprietários e possuidores foram alcançados pelas alterações legislativas posteriores.
Assim, como o Código florestal anterior era de 1965 e estabelecia a porcentagem de 20% e 50% de preservação, as alterações sucessivas por que passou em 1989 e 2001, nessa última chegando-se às porcentagens que constam na lei atual, os obrigaram ao cumprimento da nova lei, assim como à averbação da reserva legal o cartório de registro de imóveis, exigida desde a lei 7803 de 1989.
As referidas alterações não estabeleceram exceções e passaram a se aplicar a todos imóveis no país. Aqueles em desacordo com suas regras passaram à situação de ilegalidade. Então, sob a nova e atual lei, falar-se em direito adquirido implicaria reconhecer direito adquirido ao ilícito, o que, evidentemente, distorce o instituto.
Já o ato jurídico perfeito, instituto correlato, porém diverso do direito adquirido, refere-se a atos ou negócios jurídicos ditos já aperfeiçoados, vale dizer, que foram completados segundo as exigências e condições jurídicas para tanto.
Assim, a perguntar se a supressão florestal realizada sob a égide de lei anterior seria um ato jurídico perfeito remete a outras questões. Qual seria exatamente o ato jurídico aperfeiçoado? A supressão da vegetação é uma ação que não se caracteriza como ato jurídico. Seria a constituição da reserva legal então esse ato? Se afirmativa a resposta, resta analisar quais eram as condições para seu aperfeiçoamento. Como a lei 7805 de 1989 passou a exigir a averbação da reserva, sem isentar proprietários que já tinham área protegida dessa exigência, somente os imóveis com a reserva constituída e averbada alcançaram o ato jurídico perfeito e só esses podem tê-lo reconhecido pelo novo Código Florestal de 2012.
Assim, o entendimento do STF acerca do artigo 68 da Lei 12.651/2012, trará elementos à compreensão dos institutos do direito adquirido e do ato jurídico perfeito e, é importante dizer, de seus limites.
Não sendo o artigo 68 referido uma afirmação de situações de direito adquirido e de ato jurídico perfeito, resta saber se poderia, de modo amplo, estabelecer uma anistia aos proprietários em situação irregular, como pretendeu a lei.
A preservação ambiental visa a possibilitar uma adequada qualidade de vida aos habitantes de nosso planeta. É exatamente por conta dessa premissa que os legisladores editam normas prescrevendo regras de preservação ambiental, limitando, muitas vezes, faculdades individuais. Nesse sentido foram editadas as normas anteriores à Lei 12.651/2012. Assim, a sociedade possui justa expectativa no estrito cumprimento dessas regras. Não pode, sob pena de violação da dos princípios da confiança legítima e da segurança jurídica?, ser surpreendida por uma nova lei que visa a anistiar condutas que estavam expressamente vedadas. Assim, pode-se deduzir que a norma constante do art. 68 viola tais princípios.
Embora tradicionalmente esses princípios tenham se voltado à proteção do particular contra atos ou exercício do poder normativo da Administração, a proteção de direitos fundamentais de natureza difusa, como o direito ao meio ambiente, propicia sejam invocados para a proteção desses interesses em contextos em que a certa mudança normativa fira a segurança jurídica e a expectativa plausível de continuidade das regras de proteção ambiental.
Com efeito, a legislação anterior a 2012 estabeleceu regras de ordem pública tidas como necessárias à preservação ambiental. Vigentes por mais de década, resultaram em providências de proprietários e possuidores que diligenciaram para cumprir suas regras.
O entendimento da existência do dever de adotar as providências necessárias para a restauração e recuperação da reserva legal e de averbá-la tornou-se reiterado no STJ?.
Daí que o artigo 68 da Lei 12.561/2012 fere também o princípio da isonomia, estabelecendo tratamento favorecido àqueles que descumpriram a lei.
Vários proprietários e posseiros buscaram atender à legislação então em vigor, provavelmente incorrendo em alguns custos. Nesse sentido, a norma do art. 68, ao tratar de maneira privilegiada aqueles que não se adequaram à legislação anterior está dando um tratamento anti-isonômico aos demais proprietários, ferindo, pois, o princípio da isonomia.
Assim por violar princípios previstos na própria Constituição Federal, o art. 68 da Lei 12.651/2012 é inconstitucional.
É de se esperar que a Corte reconheça a inconstitucionalidade da utilização dos institutos constitucionais referidos a situações ilegais. Para além da mera interpretação técnico-jurídica, analisando-se a finalidade da lei, pode-se perceber como a aplicação dessa norma repercute no necessário equilíbrio da preservação florestal e em consequência, para os seus serviços ecológicos relativos à disponibilidade hídrica, controle do clima; polinização de sementes, controle de pragas e outros que esperemos, manterão as condições essenciais de sobrevivência já no presente.
Referências citadas:
BARROSO, Luís Roberto.Curso de Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 2010.
RAMOS, Elival S. A proteção aos direitos adquiridos no direito constitucional brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003.
ZAVASKI, Teori A. Planos Econômicos, direito adquirido e FGTS. Revista de Informação Legislativa. V 134, abr/jun 1997, p.251-273.
BATISTA, Patrícia F. Segurança Jurídica e Proteção da Confiança Legítima no Direito Administrativo. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2006.
Fonte: Instituto O Direito por um Planeta Verde